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Entrevista "Segurança Humana em Tempos de Tensão Geopolítica" com Professora Drª Teresa Cravo


Ao longo das últimas décadas, a área das Relações Internacionais deparou-se com grandes desafios e grandes debates. Um deles foi a implementação e o surgimento do conceito de “segurança humana”, termo utilizado para se concentrar na proteção e no bem-estar das pessoas, indo além da segurança tradicional. A segurança humana reconhece que os perigos enfrentados pelas pessoas vão além das ameaças diretas à sua vida ou liberdade e incluem aspectos como segurança alimentar e ambiental, acesso à saúde,, proteção contra violência e crime, oportunidades económicas e acesso à educação. 

Este termo, no entanto, tem sido contestado pelos usos intervencionistas que têm ganho ao longo das décadas. De modo a explorar a história e percurso deste conceito, estivemos à conversa com Professora Doutora Teresa Cravo - professora na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, investigadora do Centro de Estudos Sociais e atualmente coordenadora do programa de doutoramento em Política Internacional e Resolução de Conflitos dessas mesmas instituições. Do ponto de vista de investigação debruça-se sobre perspectivas críticas de paz e violência e, em termos de área de enfoque, tem-se dedicado mais aos Países de Língua Oficial Portuguesa, sendo que, independentemente disso, quando estuda paz,conflitos armados e violência, acaba sempre por abordar outros casos de estudo.



Pedro Fonseca:

Como se concebe a segurança humana e como esse tema tem vindo a ser usado por agentes estatais e não estatais nas últimas décadas?


Prof.ª Teresa Cravo:

O conceito de segurança humana é uma espécie de inovação na forma como nós tradicionalmente entendíamos o conceito de segurança. Portanto, do ponto de vista clássico esse conceito é entendido como um atributo dos atores supostamente principais do sistema internacional, que são os Estados. E, portanto, durante muito tempo a questão da segurança foi essencialmente tratada no contexto da relação entre eles. Presumia-se, então, que as ameaças à segurança de um estado eram as ameaças principais às quais devíamos prestar atenção. E isto dá-nos, em termos muito teóricos, o caráter estatocêntrico da ameaça, não é? E também entendíamos que as ameaças à segurança de um estado provinham de outros estados e que, portanto, o entendimento era a necessidade de estarmos sempre em prontidão para um risco de agressão armada. Este entendimento do estado era bastante limitado porque o objeto de segurança é o Estado, as ameaças provêm de outros Estados, e depois dá lugar, do ponto de vista da forma de lidar com essa ameaça, ao sobrentendimento militarizado da segurança. A ideia que nós temos é que este conceito tradicional de segurança é uma concepção excessivamente limitada e excessivamente militar; e ela é uma concepção que já vem de trás, mas que, por exemplo, o conflito bipolar acabou - se nós quisermos pensar mais em termos contemporâneos - por isso exacerbar, porque, efetivamente, aquilo que nós tínhamos era uma excessiva militarização das políticas externas dos estados, e tínhamos algo que, aliás, eu acho que nós estamos a voltar a ver neste contexto atual, em 2024: esta lógica de excessiva militarização das políticas externas e a ideia de que é preciso usar a violência para prevenir a violência. Percebe-se facilmente que esse discurso está muito presente hoje em dia, nomeadamente, quando falamos na necessidade do reforço da NATO, na necessidade do reforço dos orçamentos de defesa, na necessidade da cooperação militar - não numa lógica de paz, mas numa lógica de prontidão para a guerra. Esse discurso é um discurso que estava muito presente durante os 50 anos da Guerra Fria, e ele não quer dizer que estamos numa nova Guerra Fria, porque ela tem uma característica, do ponto de vista de cosmovisão muito específica daquele período bipolar, que já não existe. Essa visão de que são duas visões diferentes do mundo, comunismo versus liberalismo, que não existe agora, mas o tipo de referencial de segurança voltou a ser excessivamente militar e excessivamente estatocêntrico. E nós, se pensarmos nestes dois momentos, acabamos por olhar para a segurança humana como uma espécie de janela de oportunidade, de inovação, de um conceito que surge na década de 90, e portanto, digamos que a era dourada do conceito de segurança humana, em que ela é falada em todos os relatórios das Nações Unidas e que aparece nos discursos diplomáticos dos Estados, etc., é essencialmente na década de 90. E o conceito em si, o conceito de segurança humana surge ou é associado ao relatório das Nações Unidas do PNUD de 1924, que fala precisamente da segurança humana, e é algo que é bastante intuitivo. O conceito de segurança humana acaba de aparecer uma espécie de ruptura com esse entendimento clássico e tradicional de segurança, porque faz uma coisa muito intuitiva, que é dizer, atenção, que obviamente a segurança mesmo dos estados não é uma segurança que possa ser vista apenas do ponto de vista militar. O primeiro choque com essa visão mais limitada, e que não será surpreendente, é do lado económico, ou seja, a ideia da segurança económica. Os estados têm que se preocupar com a sua estabilidade económica, com as ameaças económicas de outros estados, e portanto, aí começamos a abrir um bocadinho o conceito de segurança militar, estatocêntrica para ainda a estatocêntrica, mas já outro tipo de ameaças, nomeadamente as ameaças económicas. E depois o que nós temos a seguir é uma abertura cada vez maior, mas a inovação do conceito de segurança humana é o referente e o objeto da segurança passa a ser o indivíduo e não o estado, certo? Ou seja, são as ameaças diretamente ao indivíduo e não necessariamente as ameaças ao estado que passam a figurar como prioritárias do ponto de vista da agenda da segurança e paz internacionais. E isto, de facto, só há abertura para fazer isto, a partir do momento em que nós temos o final da bipolaridade e, portanto, a comunidade académica e a comunidade de estudos estratégicos, a comunidade de estudos de desenvolvimento, etc., se começa a virar para novos tipos de ameaça e novos riscos e, portanto, começa a alargar o seu espectro do ponto de vista de tipologia da ameaça, mas também de referente em que o cidadão passa a ser um ator importante. E, portanto, desse ponto de vista, há aqui uma noção diferente de ameaça, uma noção diferente de quem é que é alvo dessas ameaças e, depois, obviamente, quando nós começamos a fazer esta narrativa diferente, começamos a entender que há outro tipo de ações possíveis para além da ação diplomática entre estados e para além da ação militar. Então começamos a apostar noutras áreas do ponto de vista daquilo que é o entendimento de um indivíduo que usufrui de segurança e que se sente seguro.


Pedro Fonseca:

Então, como é que a segurança humana se articula com conceitos de liberdade, principalmente liberdade individual? De que forma esses dois conceitos conseguem se entrelaçar e também divergir?


Prof.ª Teresa Cravo:

A primeira coisa a dizer em relação a isto é que, de facto, o entendimento de segurança humana é um entendimento liberal de segurança humana que surgiu na década de 90. E, obviamente, por ser liberal tem uma componente do indivíduo e do primado da liberdade do indivíduo como principal objetivo. Essa é a característica normal do liberalismo do ponto de vista da sua visão do mundo e, portanto, o conceito de segurança humana não aparece num vácuo, ele aparece vindo dessa bagagem teórica.Tem essa bagagem teórica e, portanto, vai olhar para a segurança dos cidadãos do ponto de vista de cada indivíduo, como é que ele se sente seguro e como é que nós o podemos tornar mais seguro. E, portanto, é que o Pedro assinalou do ponto de vista mais individual e da sua ligação com a liberdade, advém do fato do próprio conceito de segurança humana ser um conceito liberal e da forma como ele foi aplicado ser um conceito liberal. Isto tem vantagens e desvantagens. A vantagem é, efetivamente, uma relação muito intrínseca com o conceito de liberdade,ou seja, a própria definição do conceito de segurança humana que nos aparece é um indivíduo livre de, livre de se sentir ameaçado. Portanto, há uma ligação muito clara com o conceito de liberdade,apenas quando nos sentimos livres deste tipo de ameaças e de riscos é que nos sentimos verdadeiramente seguros. A outra questão é que, obviamente, do ponto de vista individual, há aqui sempre, esta ótica individualista que o liberalismo tende a descurar, a componente mais coletiva da segurança humana que pode, inclusivamente, ter a escala maior que é da comunidade internacional, como é que nós, enquanto coletivo, nos sentimos mais ou menos seguros. E a segurança aqui é vista num ponto de vista do bem público coletivo, que é diferente da noção de segurança como um bem-estar individual. As duas têm cabimento, elas não são mutuamente excludentes, mas é preciso dizer que na sua aplicação durante a década de 90 a lógica mais individualista foi mais preponderante.


Pedro Fonseca:

Como o conceito de segurança humana pode variar de diferentes formas e diferentes também do espaço do mundo? E como tem sido a evolução temporal desse conceito? Você explicou um pouquinho sobre ele, mas se pudéssemos falar um pouco mais também. E de que forma ele tem sido computado muitas vezes por agentes estatais e não estatais também?


Prof.ª Teresa Cravo:

Do ponto de vista de estruturar o pensamento podemos entender a segurança na sua componente mais objetiva e mais subjetiva. Quando falamos em segurança objetiva, é eu, por exemplo, estar na rua à noite e não me acontecer efetivamente nada, ou seja, não ser assaltada, não aparecer ninguém que possa causar dano, não é, e me possa fazer mal? E isso objetivamente, eu posso chegar ao final da rua e dizer, objetivamente, eu estive segura. Outra coisa é a nossa percepção individual de segurança, que é muito subjetiva,que  tem a ver com a forma como eu, enquanto estive a andar naquela rua, me senti ou não sob ameaça ou em risco, e me senti insegura ou segura. Essa perspectiva varia muito, nomeadamente a mais subjetiva pois tem muito a ver com o nosso lugar de enunciação e com a nossa familiaridade com determinadas situações. Ou seja, para determinadas minorias, nomeadamente em Portugal, mas noutros países, a presença da polícia nas ruas não lhes produz um sentimento de segurança, pelo contrário, produz um sentimento de insegurança. Porque se virem na polícia, basicamente o braço repressivo do Estado e que pode e muitas vezes age de forma violenta contra eles, eu não me sinto segura quando vejo uma polícia. Por outro lado, se eu não estou habituada a olhar para a polícia e não tenho essa experiência e não tenho essa história acumulativa de pessoas que são como eu e que me explicam situações pelas quais elas já passaram, que possam causar insegurança, eu quando vejo uma polícia eu sinto-me segura. Vai depender muito da nossa experiência e da nossa percepção.. É importante olhar para estas duas questões. Depois também depende muito quando estamos a falar de perspectiva, em relação ao que é que nós estamos habituados. O nível de segurança física, do ponto de vista de não estarmos expostos a alguém ou a grupos que nos possam causar mal com alguma facilidade em plena luz do dia, é uma sensação de segurança muito diferente daquela que vive alguém em El Salvador, na Colômbia ou num país em guerra. E talvez outra forma de explicar isso é o nosso standard de segurança humana varia imenso de acordo com o nosso lugar de enunciação e de acordo com o lugar onde nós vivemos, especificamente numa determinada altura. Por exemplo, quando nós ouvimos falar dentro da comunidade brasileira em Portugal de que muitos deles vêm para Portugal e emigram para Portugal em busca não apenas de melhorias econômicas, mas em busca de segurança, nós entendemos de onde é que isso vem. A percepção de segurança ou de insegurança é francamente superior e para esta comunidade que vem com o intuito de ser mais livre no seu dia-a-dia e de não estar sujeito a esse tipo de ameaças. É um entendimento em que Portugal aparece mais como um porto seguro, portanto, mais seguro do que. Nós estamos sempre a fazer também este tipo de comparações do ponto de vista da nossa percepção, daquilo que nos dizem. Reparem que isto não quer dizer que a comunidade brasileira esteja imune a violências praticadas, nomeadamente, por portugueses em Portugal. Estão, claramente. Mas o seu ângulo comparativo, de alguma forma, influenciou a sua vinda no sentido de se sentirem mais seguros aqui. E aqui entre nós, espero que sim que sintam mais seguros aqui. Há uma relação muito íntima da forma como vemos a segurança e também, se quisermos falar, por exemplo, em segurança no sentido de bem-estar, estamos a falar, obviamente, de standards diferentes. Para um europeu, o que é bem-estar, inclui um certo número de fatores objetivos, como ter uma casa com determinadas condições, ter um computador, ter acesso à internet.. Ou seja, a nossa noção de bem-estar e de bem-estar económico é muitíssimo diferente da noção de segurança no sentido de bem-estar de alguém que vive em contexto de guerra. Portanto, a forma como nós apreciamos a nossa situação de segurança é diferente, dependendo da nossa experiência. E depois temos sempre o ângulo comparativo. Nós vemos e conseguimos fazer essa análise, por mais irónica que ela às vezes possa ser, porque não se  esqueçam que há muito de El Dourado em relação a determinados países e que depois pode não ser a experiência real. Mas nós fazemos constantemente essa comparação.



Eu acho que quando eu digo que o conceito de segurança humana tem uma espécie de janela de oportunidade e de era dourada na década de 90, é também porque essa era é a era dourada do intervencionismo global. Ou seja, para já o conceito de segurança humana é um conceito que é melhor entendido como um conceito guarda-chuva. Ou seja, ele aplica-se genericamente a várias situações, cabem muitos conceitos de lá dentro e é uma espécie de coligação de atores que têm mais ou menos a mesma ideia, mas que ainda assim não é inteiramente conceptualmente rigorosa e clara. Mas a narrativa da segurança humana teve um papel muito importante do ponto de vista daquilo que foi as tentativas de salvaguardar a segurança humana em contextos externos que exigiram intervenções e em alguns casos intervenções armadas. Portanto, juntamente com o novo conceito de segurança humana, que nos diz que o nosso referencial principal tem que ser o indivíduo e não o Estado, o Estado não sai da figura. O que acontece é que o Estado passa a ser visto de duas formas. Como alguém que tem que ter capacidade para garantir a segurança dos seus cidadãos e com vontade para o fazer. Isto quer dizer que em situações em que nós vimos que a segurança humana estava posta em causa, aquilo que fizemos foi fazer uma interpretação do Estado no sentido de não ter capacidade ou vontade e é muitas vezes ele próprio o opressor do ponto de vista da segurança humana dos seus cidadãos. E perante essa análise, o que nós temos na década 90 é uma espécie de inversão temporária, ou seja, o conceito absoluto de soberania é posto em causa por conceitos como este, como a segurança humana que dá prioridade aos indivíduos e portanto a defesa do indivíduo em determinadas circunstâncias ultrapassa a lógica do Estado enquanto caixa fechada que pode fazer o que quiser no seu território, nomeadamente contra os seus próprios cidadãos. Então a década 90, a narrativa era o Estado tem que agir com responsabilidade e tem que ter capacidade e tem que ter vontade de atuar no sentido de assegurar e de garantir a segurança dos seus cidadãos. Quando não o faz, e portanto a título subsidiário, aparece a comunidade internacional e a comunidade internacional pode agir nestas circunstâncias. Isto não implica que o conceito de soberania tenha desaparecido, mas a ideia é que em determinadas circunstâncias, nomeadamente em circunstâncias que de alguma forma causavam algum choque moral à comunidade internacional, a comunidade internacional reservava-se o direito de suspender temporariamente essa lógica de soberania absoluta do Estado, intervir a favor da proteção dessas populações e depois, idealmente, ter uma espécie de estratégia de saída que muitas vezes não aconteceu, mas a lógica era poder intervir. Isto quer dizer que o conceito de segurança humana serviu claramente o propósito do intervencionismo global. Portanto, em algumas circunstâncias nós conseguimos pensar, não acho que haja qualquer circunstância de intervenção externa isenta de interesses nacionais e de defesa de interesses nacionais de quem intervém, ou seja, de quem se arroga de ter a prerrogativa da intervenção. E como diz um autor e  professor de direito norte-americano, Richard Folk, o intervencionismo é como o Mississippi, corre sempre de norte para sul. São sempre os mesmos Estados de alguma forma a arrugarem-se do direito de intervir noutros estados, a não ser que haja, e digo isto mesmo em contexto das Nações Unidas enquanto ator internacional. E portanto, o que é que acontece? Durante a década de 90 nós temos esta narrativa a servir a esse interesse de alimentar a ideia do intervencionismo global e portanto, a servir a necessidade de suspensão temporária da soberania em algumas circunstâncias, em que era preciso intervir sem o consentimento do Estado, ou a agir com o consentimento do Estado, mas que ainda assim não deixa de ser um desafio à sua soberania absoluta, porque temos basicamente, mesmo com o consentimento do Estado, um ator externo a intervir, e a intervir com o uso da força e com o aparato militar por trás. E portanto, desse ponto de vista, o Conselho de Segurança Humana tem sempre esse risco, e vai ter sempre esse risco, e é o de ser instrumentalizável a favor da política externa dos estados, que têm determinados interesses em intervir em determinados contextos. Isto, independentemente de haver uma causa moral que possa ser justificada e que possa ser defendida, do ponto de vista dessa intervenção.


Pedro Fonseca:

E quais, você diria, seriam os exemplos mais significativos de países,  que adotam abordagens, nesse sentido de segurança humana para promover liberdade e os direitos individuais, e quais lições podem ser pedidas por essas experiências intervencionistas?


Prof.ª Teresa Cravo:

Então, em relação à primeira parte do ponto de vista de que organizações é que têm atuado, obviamente, durante a década de 90, o espaço foi ocupado e ocupado de forma propositada pelas Nações Unidas, porque não se esqueçam que as Nações Unidas tinham estado numa situação de paralisia, nomeadamente no Conselho de Segurança durante o conflito bipolar, e portanto, aquilo que acontece na década de 90 é abrir-se uma janela de oportunidade para a própria legitimação das Nações Unidas enquanto organização mundial. E portanto, aparecem na década de 90, de alguma forma, a recuperar a sua missão de 1945, de ser o ator preponderante na manutenção da paz e da segurança internacionais, que não tinham sido durante o conflito bipolar. Então, tinham conseguido agir nas margens, mas não tinham conseguido agir no coração da organização, que era o Conselho de Segurança. Com a década de 90, o Conselho de Segurança deixa de ser alvo da paralisia, que era o reflexo direto da bipolaridade, e portanto, há imensas resoluções das Nações Unidas que são passadas nessa altura, e que obviamente dão mandato, claro, às Nações Unidas para agirem em todos os continentes do mundo e em variedíssimos contextos de conflitualidade armada, onde a segurança humana estava posta em causa. Portanto, novamente, aqui a ligação com esse conceito. A Organização das Nações Unidas ocupou aqui um papel preponderante não só na conceptualização do conceito de segurança humana, através dos seus relatórios, como depois na sua materialização, em termos de e agora o que é que fazemos para a salvaguardar? E aqui entra o ator chave da manutenção da paz e da segurança internacionais, para fazer vingar e validar o conceito. E portanto, aí há uma série de intervenções. Estamos a falar de intervenções que têm um caráter humanitário muito claro, em que se refere à necessidade de proteger a população. E vai desde o Iraque logo, em 1991, até depois ao esticar deste conceito, que é acupelado ao conceito de intervenção humanitária, que acontece em 1999 com o Kosovo em que quem assume esse papel deixa de ser as Nações Unidas, que está novamente paralisada no Conselho de Segurança, e passa a ser a NATO a rogar-se da prerrogativa de intervir. E houve aqui, obviamente, um debate enorme em relação à possibilidade da NATO poder assumir esse papel. E da legalidade e da legitimidade da NATO ter assumido, efetivamente, esse papel. Mas a discussão mantém-se. Ou seja, aqui a questão é em torno do conceito de autoridade. Quem é a autoridade a nível da comunidade internacional, que pode efetivamente atuar nestes contextos, sendo que do ponto de vista moral há algum consenso de que o Estado não pode fazer o que entenda aos seus cidadãos, e que, portanto, quando o Estado não cumpre esse papel, de alguma forma a comunidade internacional tem uma responsabilidade moral de agir. Mas o consenso pára aí, porque depois falta a vontade política para agir, e há uma diferença enorme entre se pensar, por exemplo, olhem para a Palestina neste momento, há uma diferença enorme em se pensar que aquele nível de catástrofe humanitária não é aceitável do ponto de vista moral, e o que poderia ser uma intervenção a vários níveis, e atenção, eu não estou a defender uma intervenção armada, porque há vários tipos de intervenção aqui, e a vontade política de intervir efetivamente nesta situação. E, portanto, esse problema mantém-se hoje, na década de 90 foi mais fácil porque havia mais vontade política de intervir e não havia paralisia, nomeadamente o Conselho de segurança, agora voltamos a ter essa situação de paralisia, e há pouca vontade política de intervir, nomeadamente dos grandes estados, do ponto de vista dessa situação, sendo que moralmente é, parece-me que óbvio para toda a gente, que não é uma situação aceitável. E, portanto, aqui a questão continua a ser quem é que tem autoridade e quem é que tem vontade política para intervir neste tipo de situações, sendo que as situações continuam a ocorrer, ou seja, sendo que a questão da proteção da população e dos indivíduos precisa de continuar a estar na agenda do ponto de vista prioritário, da forma como a comunidade internacional pretende governar o mundo, e a forma como a governação global se pode dar.


Pedro Fonseca:

Você falou um pouco do papel de algumas organizações internacionais nesta intervenção. Você poderia aprofundar um pouco mais sobre a questão dos obstáculos para implementação dessas políticas? Você falou que às vezes falta uma vontade política, uma de intervir e tudo mais, mas o que seria essa vontade e quais serão os obstáculos que impecem essa intervenção muitas vezes?


Prof.ª Teresa Cravo:

Vou deixar, assim, claro que os obstáculos específicos a cada uma destas situações, como por exemplo a Palestina, tem que se falar diretamente da questão em causa e de forma muito concreto, mas se a resposta for uma resposta mais genérica. Em todas estas situações há um contexto para elas, certo? E portanto, a comunidade internacional, e se nós tivermos uma leitura mais histórica das relações internacionais, nós vemos que a comunidade internacional está mais ativa em determinados momentos e menos ativa noutros, no sentido em que a comunidade internacional consegue cooperar entre si de forma mais dinâmica e mais produtiva e outros momentos em que essa lógica da cooperação é muito facilmente substituída por uma lógica de competição e detenção. E portanto, na década de 90 nós tivemos aqui uma janela de oportunidade do ponto de vista dessa cooperação e dessa tentativa de procurar soluções comuns para problemas comuns. O que nós assistimos a partir de 2008, mais ou menos, mas especificamente se quisermos falar em 2024, é uma situação que é simétrica do ponto de vista oposto, não é? Ou seja, em que a lógica da competição está muito mais presente, em que a tensão entre os estados que podem efetivamente ter um papel neste tipo de situações é uma tensão que é agravada pela proliferação deste tipo de situações em que estes estados são obrigados ou a cooperar ou a competir, e portanto eles estão constantemente a ter que se posicionar quando o enquadramento de fundo é o enquadramento de competição e detenção. E portanto, situações que provavelmente poderiam ser resolvidas de outra forma, se fosse o contexto mais favorável, neste momento o que nós vemos é, e atenção à perspetiva também, é a da competição e a da tensão e do agravamento e deterioração das relações entre os estados que podem efetivamente ter alguma coisa a dizer. Isto não implica atenção que não haja aqui outros atores que nós não estamos a falar e que não têm que ser organizações estatais, ou seja, organizações interacionais compostas por estados, mas sim movimentos sociais, movimentos de cidadãos, etc, que são importantes, mas o sistema é tendencioso, o sistema está molado a favor dos estados, porque o sistema é estatocêntrico e portanto quando o problema se dá ao nível da cooperação ou não, da competição ou não entre os estados, no relacionamento dos estados entre si, temos um problema do ponto de vista da capacidade de resolução de problemas mais localizados, e obviamente há problemas localizados e problemas que podem parecer localizados e que não são, não é? Portanto, quando se olha para a Ucrânia, que é outra situação importante do ponto de vista de tragédia humanitária e de preocupação grave em termos de segurança humana, quando olhamos para a Ucrânia percebemos que a Ucrânia não é um ponto localizado, certo? No meu entender, é basicamente um produto de uma guerra interimperial entre os Estados Unidos e a Rússia e portanto depois tem variedíssimas outras ramificações, mas não é um conflito localizado, porque ela arrasta agendas políticas externas das grandes potências ou dos estados que têm, efetivamente, poder naquela região ou a nível global, e portanto, quando estes estados que têm capacidade para resolver os problemas estão, efetivamente, de costas voltadas, como é o caso, e em crescente competição, ou seja, não é uma competição estanque, aquilo a que nós assistimos em 2024, por isso é que a prespetiva pessimista é que a geopolítica internacional está a tornar-se cada vez mais perigosa desse ponto de vista. Portanto, menos espaço há para resolver situações de proteção de população, porque todas estas agendas são vistas pela ótica egoísta e competitiva das políticas externas dos estados em causa e, depois, também há muito pouca margem de atuação para além das grandes potências, nós moldámos o sistema assim e portanto quando o problema reside no relacionamento das grandes potências há pouca capacidade para resolver os problemas a nível global.      


Pedro Fonseca:

Por fim, quais são as oportunidades e desafios futuros para uma integração do conceito de segurança humana na agenda da política internacional, uma que visa realmente promover a liberdade e igualdade humana? E como podemos trabalhar coletivamente para atingir esse objetivo?  


Prof.ª Teresa Cravo:

Eu estou numa fase pessimista. Eu acho que isso é claríssimo nas minhas aulas, passo a vida a acabar as aulas a dizer “And ending on a not positive note…”. E de facto, a minha resposta pode ser a de não precisarmos do conceito de segurança humana desde que a noção de proteção esteja presente. Eu acho que, respondendo diretamente à pergunta em relação ao conceito de segurança humana, eu diria que o conceito de Segurança Humana está atualmente desatualizado, não se esqueçam que as relações internacionais também funcionam assim, os conceitos tornam-se démodé, eles abrem espaço numa determinada altura e depois podem deixar de ser úteis e ser relevantes e depois são substituídos por outros. Eu acho que segurança humana teve um papel importante, como eu vos disse, do ponto de vista de narrativa e visão e entendimento das coisas na década de 90, depois foi perdendo peso. Não acho que segurança humana neste momento tenho uma espécie de comeback, ou seja, de repente agora toda a gente volta a falar em segurança humana dessa forma, mas a noção por detrás do conceito de segurança humana mantém-se, ou seja, a comunidade internacional entende que os problemas que se passam a milhares e milhares de quilómetros de distância que afetam seres humanos como nós, nos devem interessar e nos deve preocupar. Esse é o valor principal. Agora o problema é todos os obstáculos à concretização dessa proteção e neste momento a minha resposta é pessimista, porque eu acho que a capacidade de dar prioridade a este valor, que é da proteção das populações, versus agendas dos estados e nomeadamente de políticas externas de projeção de poder dos estados, a balança está completamente virada para o lado das políticas externas dos estados. Há uma coisa que eu acho que nós não entendemos bem, que temos que perceber, que é, isto é uma espécie de self-fulfilling prophecy, ou seja, nós quanto mais entendemos as relações internacionais assim, mais agimos dessa forma. E portanto quando dizemos que é preciso aumentar os orçamentos de defesa, porque há um risco, nós estamos basicamente a criar condições para que esse risco se concretize. Os realistas, aliás, explicam isso bem com o chamado “Dilema de segurança” que é uma ação defensiva do Estado A é vista como ofensiva pelo Estado B e vai levar a uma escalada, etc. Nós interpretamos o mundo de acordo com toda a nossa bagagem, não é? E se durante muito tempo nós achamos que a situação vai piorar e que por causa disso temos que ter alguma prontidão nomeadamente a nível militar e que é preciso investir a nível militar, nós passamos a olhar para as relações internacionais meramente por essa visão e por esse prisma. Portanto isso acaba por agravar ainda mais a situação. Se a pergunta é num futuro mais próximo, mais imediato, eu estou bastante pessimista em relação à possibilidade de colocarmos a proteção de populações em perigo no topo das prioridades, quando no topo das prioridades está neste momento a competição e a projeção de poder.



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