Por Vinicius Cluk
18 de março de 2024
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Seja a cada quatro anos, nos tradicionais campeonatos mundiais de futebol, as Copas do Mundo, seja anualmente na categoria mais nobre do automobilismo, as temporadas de Fórmula 1, os eventos desportivos chamam a atenção e o interesse de muitas pessoas e, muitas vezes, dominam as rodas de conversa entre amigos.
O desporto, uma atividade saudável na sua generalidade, com inúmeros benefícios para a saúde física e mental, além de ser fascinante também serve de espaço e objeto de sociabilização, sendo capaz de movimentar bilhões em diversos mercados, como propaganda, equipamento desportivo, engenharia, entre outros.
Não é raro a existência de casos de marcas e empresas ligadas intrinsecamente a práticas desportivas, como a Nike, Adidas, ou até mesmo produtos fora das atividades desportivas em si, como a Red Bull ou a Coca-Cola. Num mundo de livre competição, as maiores empresas do mundo utilizam o palco e o público ligados ao mundo do desporto para catapultar sua imagem e vendas.
É um mercado que atrai todos: desde uma simples camisola patrocinada por uma empresa têxtil até os caríssimos relógios Rolex ou Tag Heuer, que estampam as propagandas das pistas dos Grandes Prêmios de Fórmula 1. No entanto, ultimamente essa prática tem crescido a níveis jamais antes vistos.
Com a crescente comercialização do desporto, de certa forma foi natural o escalonamento dessas atividades a patamares muito maiores. Agora não se trata mais somente de quem financia um evento, constrói um estádio ou providencie as equipas com o equipamento necessário, mas sim do background do mundo corporativo por trás das grandes equipas e eventos desportivos.
Há já algum tempo que associações internacionais como a Federação Internacional do Futebol (FIFA) e a Federação Internacional do Automobilismo (FIA), vêm sendo complacentes com a compra do desporto por governos e empresas privadas, em troca de dinheiro e manutenção do poder de certos grupos no comando dessas organizações.
Não é uma tarefa difícil perceber essa tendência, basta observar onde foi realizada a última Copa do Mundo ou onde têm e tiveram lugar alguns Grandes Prêmios de Fórmula 1 nas temporadas mais recentes da categoria. A supercompra do desporto, ilustrada aqui pelo futebol e automobilismo, mas não limitada apenas a estes, dá-se sobretudo pelos bilionários árabes do petróleo e gás natural, oriundos na maior parte das vezes dos chamados países do Golfo, ou seja, Catar, Bahrein, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, entre outros. Trata-se de pessoas, famílias e clãs político-económicos extremamente ricos, que dominam uma grande parte da riqueza global, e que encontraram nos últimos anos um novo destino para as suas fortunas.
A Copa do Mundo no Catar em 2022, um país sem tradição com o futebol e onde sua prática não era e ainda não é popular, surge, sem dúvida, justamente do contexto de presença constante e forte desses círculos de poder dentro do desporto e dentro da FIFA.
Além disso, com o recente anúncio dos mundiais de 2030 e 2034, percebe-se claramente o stakeholder com mais poder e influência nesse meio. Portugal, Espanha, Marrocos, Argentina, Uruguai e Paraguai foram todos condensados para receber a edição que marca o centenário dos mundiais de futebol para dar espaço à Arábia Saudita receber sozinha o mundial em 2034.
Foi deixado de lado o marco simbólico de 100 anos do evento, a alusão à primeira edição realizada no Uruguai em 1930, a distância geográfica entre os países-sede e, a pior parte, os torcedores nacionais que vão enfrentar dificuldades para acompanhar suas seleções em três continentes diferentes.
Por que reduzir a candidatura sul-americana, tão marcante pelo centenário da Copa do Mundo, a meros jogos pontuais? Por que o Chile, que estava junto da candidatura sul-americana, foi deixado de fora? Por que acrescentaram a isso dois países europeus e um africano? Todas essas perguntas se respondem simplesmente porque a FIFA precisava dar espaço para um dos grandes patrocinadores do futebol, a Arábia Saudita.
No futebol, esse fenómeno não se limita somente à FIFA e às Copas do Mundo quadrienais, atingindo também os grandes clubes de futebol, muitos deles com milhões de torcedores. Na Europa, a maior parte dos maiores clubes de futebol do mundo estão hoje na mão de empresários árabes multimilionários, como são os casos do Paris Saint-Germain (PSG), Manchester City e Newcastle, fora o pesado patrocínio de empresas ligadas a corporações árabes, como a Emirates ou a Qatar Airways.
Essa situação fica ainda mais bizarra quando se leva em consideração o fato desses países serem tipicamente ligados a ditaduras, monarquias absolutas, falta de direitos humanos, liberdade de expressão e de imprensa, marginalização das mulheres, forte homofobia e machismo, valores tradicionalmente não aceites pelo Ocidente.
Situação semelhante se replica no automobilismo. Os Grandes Prêmios (GPs) realizados nesses mesmos países árabes vêm aumentando nos últimos anos. Atualmente, quatro Grandes Prêmios são disputados nesses locais, nomeadamente os GPs de Abu Dhabi, do Catar, do Bahrein e da Arábia Saudita.
Para além disso, as grandes petrolíferas árabes também têm um papel importantíssimo no automobilismo por razões óbvias, já que um dos usos mais amplamente conhecidos do petróleo, os combustíveis fósseis, como a gasolina, estão totalmente ligados com o mundo do automobilismo.
Num quadro geral, o que se observa é uma total mudança de foco da indústria desportiva, das organizações internacionais do desporto e das equipas e times. O que passa a importar é quem tem mais dinheiro para bancar ou comprar o mundo do desporto, seja para enriquecer certos grupos ou mesmo manter o status quo.
Tanto o desporto em si, como o torcedor são cada vez mais marginalizados e colocados de lado. Claramente, o desporto já não é mais feito visando o bem-estar e o desempenho dos jogadores ou a diversão dos torcedores, e sim a serviço de grandes grupos de interesse.
Saudosos são os tempos de Pelé no futebol, especialmente no início da carreira, um tempo em que não havia ainda a massificação do futebol, e o que realmente importava era a qualidade e o desempenho dos jogadores dentro de campo, suas jogadas de mestre e a animação de uma plateia cheia, que acompanhava tudo eufórica. Um tempo em que jogadores não valiam milhões e nem recebiam salários astronômicos.
Em suma, infelizmente, é provável que cada vez mais o desporto passe a ser cada vez mais uma arena de negócios do que uma de proeza, destreza e talento. O desporto continua a ser um jogo, um jogo de poder, interesses e influência.
Referências