Esther Monteiro
20 de abril de 2024
Na língua Tupi-guarani a palavra “acemira” significa: “o que faz doer, o que é doloroso”.
Mesmo após 60 anos, a Ditadura Militar Brasileira que durou de 1964 até 1985 ainda causa dor na história brasileira. Foram 21 anos de perseguição, tortura e de duras mortes silenciadas, algumas ainda hoje não solucionadas e muitas delas esquecidas. É o caso do genocídio de mais de 8.000 indígenas, brutalmente mortos nos anos da ditadura, este é somente o número de casos que chegaram a ser documentados e foram apresentados na Comissão Nacional da Verdade, em 2014,. Entretanto, acredita-se que este número pode ser exponencialmente maior do que o apresentado. Esta é uma história de violência que enfrenta ainda hoje um constante descaso na memória dos brasileiros, que se reverbera na sua injustiça e se perpetua na amnistia de seus criminosos.
No dia 31 de março de 1964, o general Olympio de Mourão havia tomado Minas Gerais e marchava com as suas tropas em direção ao Rio de Janeiro. O golpe foi rápido. No dia seguinte, uma sessão da Câmara dos deputados estabeleceu que o então presidente da República Brasileira, João Goulart, fosse deposto. Com o pretexto de “estabelecer a ordem social” e “salvar o país da ameaça comunista”, o Golpe civil-militar foi defendido por boa parte da elite brasileira que não via com bons olhos as propostas de Goulart, que incluíam estabelecer uma reforma agrária no país e fortalecer as empresas estatais.
Desde a sua implementação, a Ditadura Brasileira tratou de calar e perseguir os seus opositores enquanto estabelecia um plano de industrialização e abertura comercial em todo o país. Para isso, era necessário o “povoamento” de regiões que, segundo os militares, estavam despovoadas e, portanto, suscetíveis a invasões estrangeiras e a ideias “subversivas”. As regiões Norte e Centro-Oeste do país foram pontos centrais para essa estratégia. Em 1970, o Programa de Integração Nacional (PIN), criado pelo general Médici, estabelecia a criação da rodovia Transamazônica, ligando o Amazonas a Paraíba e prevendo a criação de comunidades rurais nas suas margens. Entretanto, estas áreas não estavam despovoadas – diversas comunidades indígenas que já habitavam alguns dos locais onde a rodovia passaria tiveram que ser retiradas. O ponto é que o “povoamento” ao qual o governo se referia não englobava os povos indígenas, na verdade, a política de “povoar as terras sem homem” parecia inviabilizar completamente a presença dos mesmos na região.
Até mesmo a FUNAI (Fundação Nacional do Índio), criada em 1967, tinha como principal função não a defesa dos direitos dos povos originários, mas sim a promoção da retirada dessas populações e das suas comunidades seculares. Cabia à FUNAI, comandada pelos militares, deslocar essa população de uma maneira bem “à la bandeirantes”. O primeiro contato dava-se por meio a tentar induzir os povos a se retirarem, os que negassem sair das suas terras de origem sofriam violentas repressões. Nos conflitos que ocorreram nos anos seguintes entre as forças indígenas e as forças nacionais, diversas comunidades indígenas foram verdadeiramente massacradas e algumas até mesmo exterminadas. Davi Kopenawa, líder dos povos yanomami, um dos povos mais impactados pela ditadura, relatou os tempos vividos na Comissão Nacional da Verdade: “Eu não sabia que o governo vinha deixar estrada na terra yanomami. [A autoridade] não avisou antes de destruir o nosso meio ambiente, antes de matar o nosso povo yanomami. A estrada é o caminho de invasores garimpeiros, fazendeiros, pescadores e caçadores.” O relato de Kopenawa identifica outra questão, a política de “despovoamento” dessas regiões dava abertura para a entrada de garimpeiros na região, incentivados por uma outra política velada na industrialização da região – a promoção e o financiamento da Ditadura Militar Brasileira na desflorestação da Floresta Amazônica. Segundo o Instituto do Homem e do Meio Ambiente (Imazon), estima-se que na década de 70, o desmatamento atingiu um número hoje equivalente a quase 70 milhões de hectares. Por meio da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), nessa mesma década, o governo passou a incentivar não só o povoamento, mas principalmente, a produção na região aos ricos donos de terra interessados, o que foi essencial para a escalada no número de derrubadas. Tudo isso era gravemente silenciado, a realidade do que acontecia na “distante” Amazônia não era revelado para os brasileiros intencionalmente, de forma a não gerar revolta e descontentamento com o regime. Por outro lado, o que era apresentado era um governo comprometido com as causas indígenas, um governo que havia criado a FUNAI e que estava disposto a unificar o país com um desenvolvimento nas terras “não habitadas” do coração do Brasil.
Apesar dessa história não ter sido contada devidamente em território nacional, a imprensa internacional pressionava o governo a explicar-se sobre o extermínio de povos indígenas e a desflorestação da floresta. As autoridades brasileiras, entre militares e políticos, achavam um absurdo e um exagero o termo “genocídio” ser utilizado pelas esferas internacionais, e negavam constantemente a realidade do extermínio em terras brasileiras. O apurado investigado anos depois na Comissão Nacional da Verdade revela que as torturas foram inúmeras e em diferentes formatos, desde a transferência indevida de comunidades indígenas para regiões não propícias e a retirada violenta e armada, a uma prisão exclusiva para indígenas da etnia Krenak em Minas Gerais onde ocorria trabalho forçado, desaparecimento de prisioneiros e morte por tortura no tronco. Além da introdução proposital e criminosa de doenças externas em aldeias inteiras, assim como o descaso no tratamento das mesmas pelas autoridades, sem falar dos relatos de exploração sexual de mulheres e crianças indígenas. O relatório somente analisou 10 etnias indígenas brasileiras, entre as mais de 305 que existem no país. Entre o apurado de mortes registrado somente nesta época estão 90% do povo Suya Ocidental, 65% do povo Krenakore, 60% dos Parakaña e 35% dos Araweté, entre outros povos impactados.
Mesmo após 60 anos do golpe e dos seus acontecimentos tortuosos, principalmente aos povos indígenas, muitos brasileiros não têm conhecimento do genocídio vivido no seu próprio país. E mais, mesmo agora após as eleições presidenciais de 2022, que culminaram na difícil vitória do atual presidente Lula, apoiadores do presidente Bolsonaro foram acampar em frente a quartéis em todo o país clamando por um novo Golpe Militar. É evidente que a Ditadura Militar brasileira é um fantasma que ainda anda à espreita e muito disso se deve à própria forma como acabou. A democratização foi uma concessão do Governo Militar após 21 anos de um poder que não detinha a mesma força de quando foi estabelecido, portanto o caminho para o fim da ditadura brasileira foi pavimentado pelos mesmos que a impuseram. A Lei da Amnistia de 1979, já previa o fim do regime e foi a forma mais eficaz que os militares encontraram de se protegerem dos inúmeros crimes cometidos por eles. A lei perpetua até hoje enquanto os responsáveis pelas torturas morrem de velhice, sem pisar uma única vez num tribunal para serem julgados devidamente. A amnistia nesse caso trabalha para o esquecimento, não só das punições, como dos crimes ocorridos. Histórias apagadas antes mesmo de encontrarem o fim. E com a memória propositalmente fraca, caímos nos mesmo erros movidos pela história não contada. A resposta que fica é: Após 60 anos não pode mais ser permitido omitir o que ainda hoje é “acemira”.
Referências: