Entrevista por Roger
06 de fevereiro de 2024
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R: Boa tarde, sou o Rogério, da redação do Jornal Volta ao Mundo com R.I., e tenho esta tarde a honra de apresentar o professor Miguel Borba de Sá. Foi docente convidado do curso de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra ao longo de três anos e meio. Boa tarde, professor.
M: Muito boa tarde, obrigado pelo convite. Sou o Miguel e fico muito feliz de estar na FEUC ainda, depois de três anos e meio, para estar aqui conversando com vocês do Volta ao Mundo.
R: Parece que estamos inundados em crises há décadas: desde a crise financeira do subprime em 2008, à crise ecológica que ganhou maior destaque nos últimos anos, à crise pandémica em 2020, à crise inflacionista que enfrentamos recentemente perante as consequências da guerra na Ucrânia, e agora o aumento do clima de tensão belicista mundial. Perante isto, é correto afirmarmos que vivemos num clima mundial ou num clima social pessimista? Se sim, como é que esse pessimismo é refletido nas RI? E como evitá-lo?
M: Bom, em primeiro lugar, gostaria de saber até o final dessa entrevista o porquê do tema do pessimismo para vocês. Essa é a minha única pergunta, porque eu estou preocupado, confesso, diante de algumas coisas das novas gerações que eu acho que não percebo bem. Queria saber se há algum tipo de elogio do pessimismo ou até fetiche do pessimismo, porque hoje tem muito disso, a fetichização da depressão, da automutilação, da incapacidade de amar, da incapacidade de fazer sexo. Tem uma série de fracassos celebrados e o pessimismo, enquanto não sei se só o pessimismo, mas uma certa tristeza, depressão, acho que uma desesperança como o estilo de vida pós-moderno na era das redes digitais. Quero saber mais de vocês sobre isso, mas acho que vocês, sem saber, acertaram ao perguntar sobre o pessimismo, porque eu me considero um pessimista também, talvez por razões similares. Mas vou tentar não fugir da sua pergunta: uma pergunta sobretudo histórica, sobre o que está acontecendo neste momento, sobre as crises. E ela me faz lembrar de outro grande pessimista - o filósofo alemão Walter Benjamin, parte marginal da Escola de Frankfurt. Ele era um grande pessimista. Tem uma biografia de Benjamin escrita por Hannah Arendt que é muito boa, recomendo que vocês a leiam, é realmente interessante. E o Benjamin lá no seu escrito sobre a ideia da história, ele traz uma metáfora um tanto mística - não é religiosa, é mística - da história. Podemos representar a história de várias formas, da história linear, eurocêntrica, que conhecemos, unilinear, progressiva, evolutiva, uma história que seja cíclica também, entre outras possibilidades. E o Benjamin gostava de olhar a história ainda de uma forma linear, mas de uma forma curiosa. Ele dizia que tinha um anjo - a história era um anjo, o anjo da história, um anjo que andava para frente no caminho, andava de costas no caminho da história, ele andava olhando para trás. A história vai andando e o anjo vai olhando para trás, e o que ele observa? Catástrofes, ele observa sofrimento, destruição, catástrofes, a história então começa a ser uma coleção de grandes catástrofes, pesada. Ou seja, me parece que esse é um jeito triste, ainda que realista, ainda que místico, de olhar para a história. O historiador me parece que tem a obrigação não de ser pessimista, mas de ser no mínimo respeitoso e consternado, como se estivéssemos num grande velório, a humanidade é o seu próprio velório constante, num certo sentido. Então, nesse sentido, eu acho que crises são parte da humanidade, sejam crises econômicas, sejam crises ecológicas, crises políticas, crises sociais. Então, nesse sentido, eu fico um pouco com o pessimismo de vocês, e acho que vamos continuar a prosseguir com esse anjo que olha para trás e vê uma série de catástrofes. Nesse sentido, eu sou um pessimista e acho que não tem muita alternativa em relação a isso se isso implica que sejamos totalmente desesperançosos. E aí é outra coisa que podemos conversar.
R: Acha que há alguma forma de evitar este pessimismo, ou é algo que está condenado a ser, assim, enorme entre as pessoas?
M: Acho que há duas coisas aí, em torno da teoria crítica: em primeiro lugar, aquela famosa frase de Gramsci, de aliar o pessimismo da razão com o otimismo da vontade, e de alguma maneira ter uma totalidade dialética, um todo, que funciona a partir dessa tensão entre os opostos, esse otimismo, esse pessimismo, essa vontade de que as coisas deem certo por tanta esperança, e esse pessimismo de saber que as coisas nem sempre vão certo, me parece que é uma grande lição. Por outro lado, eu acho que também é interessante diferenciar tipos de pessimismo, e era um pouco nesse caminho a minha provocação inicial com vocês, nem todo pessimismo é igual, não é? Então, pensando em termos de teoria social, contemporânea, filosofia, ocidental, penso em dois grandes tipos de pessimismo: um mais ligado a essa atitude niilista, fatalista, não tem muito o que fazer, que eu acho que se dialoga mais com essa ode à tristeza, esse elogio da incapacidade, da resignação, que abdica de fazer alguma coisa para transformar a realidade, se o mundo é essa porcaria, sempre foi, sempre será, eu no máximo vou cuidar da minha vida e não me importo tanto com o resto, até porque é inútil, e acaba, portanto, a desenvolver esse tipo de atitude que eu acho extremamente perigosa, esse é um pessimismo bem perigoso, porque ele é um pessimismo que me parece que tenta ou reprimir ou sublimar essa própria angústia, mas uma hora ele explode. Então eu fico pensando que uma sociedade bem maluca como os Estados Unidos, onde frequentemente estudantes da idade de vocês invadem suas próprias universidades, armados com fuzis e fazem aquelas atrocidades, eu fico imaginando quanto essas pessoas não encarnam esse ideal do sofrimento calado, silencioso. Eu não acho que elas leem Nietzsche, nem acho que Nietzsche é culpado de tudo isso, pelo contrário, acho que ele é mal lido e mal reivindicado, mas o quanto essa atitude niilista e individualista, portanto, em algum momento ela pode explodir, e ele é muito perigoso. É um pessimismo diferente do que com o qual eu me identifico bastante, vocês sabem disso, que é com aquela turma da escola de Frankfurt, já citei o Benjamin, dessa primeira geração, Adorno, Rockheimer, Benjamin, que tinham uma espécie de pessimismo, mas que me parece que era politicamente orientado para a transformação, então o pessimismo deles, como o estatuto da razão no ocidente, razão podendo se tornar a base da barbárie, a barbárie não precisa ser irracional, a barbárie pode ser extremamente racional, mensurável, moderna, portanto, como no caso do Holocausto sobre o nazismo, então esse pessimismo contra a própria modernidade, quanto ao mundo ocidental, quanto ao projeto de emancipação iluminista - eles eram muito céticos em relação, ou pelo menos muito não, mas metade do caminho, céticos em relação a isso. Numa análise bem dialética da história, as coisas podem se transformar ao seu contrário, ao excesso no mundo excessivamente administrado, no mundo excessivamente controlado, no mundo tecnocrático, onde as decisões políticas passam a ser tomadas por técnicos, e bom, sabemos que o nazismo era um regime extremamente tecnocrático, então me parece que esse pessimismo é diferente do outro, porque ele tem lugar para esperança, ele tem lugar para a ideia de emancipação, ele tem lugar para a ideia de revolução em algum lugar, ou a ideia de reconciliação da humanidade consigo próprio, enfim, esse povo tem alguma origem marxista, ainda que tenha um pessimismo forte da psicanálise que diga para nós que não tem solução, é impossível a humanidade inteira fazer terapia. Mas tem uma explicação que me parece que é mais histórica, que é assim, olha, enquanto estivermos nesse tipo de sociedade, para eles isso é muito claro, uma sociedade capitalista, monopolista, cada vez mais desenvolvida, temos toda a razão para ter pessimismo, e enquanto abdicarmos de mexer com isto, vamos mexer em todas as outras coisinhas que são possíveis de mexer hoje, e fazer melhorias possíveis aqui, tentar produzir um capitalismo com rosto humano, sempre que for possível, não é? Includente, respeitador das diferenças, com um pouco de bem-estar social, apoios, isso, não é? Enquanto fizermos isso, os nossos amigos originários de Frankfurt diriam, olha, isso não vai correr bem, não é? Porque a razão que temos para ter alguma forma de esperança é a emancipação humana, e emancipação humana significa destruir os principais sistemas de poder, a totalidade desses sistemas de poder, e o capitalismo tal qual, estrutura a própria humanidade tem que ser enfrentado, Volker Hamer falava assim, “não quero falar com ninguém sobre o nazismo”, não dá para falar a sério com ninguém sobre o nazismo quem não queira falar sobre o capitalismo, não dá para falar sobre alguma coisa sem falar de outra, então, o que ele implicava nisso? Enquanto estiver no capitalismo, a ameaça do fascismo estará sempre conosco, é o verdadeiro fantasma que ronda a Europa e ronda outras partes também, não é nenhum aspecto do comunismo, é o aspecto do fascismo, do nazismo, não é? Então, me parece que esse segunda forma de pessimismo é um pessimismo que impele a ação, ele não impele a inação, e essa inação que em algum momento vai desembocar, eu acho, em alguma reação individual, alguma coisa que vai explodir, ele impele a ação coletiva, então, se você pega aqueles movimentos lá de maio de 68, principalmente nos Estados Unidos, onde a Fernanda estudava, em Berkeley, quem era o principal ídolo daquelas pessoas ali? Era o Marcuse, que aliás é dessa turma da primeira geração de Franco, tem vários livros sobre, são livros muito pessimistas na verdade, mas que não paradoxalmente aquela leitura estimulava os estudantes para a luta, e não para se resignar e ficar em busca de soluções individuais, mas o pior é abdicar até mesmo de soluções individuais, então acho que tem essas diferentes formas de pessimismos e otimismos, e a gente tem que ter muito cuidado para saber em qual delas transitar.
R: Analisando a história recente da humanidade, acabamos por chegar à conclusão de que temos vivido sempre num clima onde reina a incerteza e o pessimismo. Desde a Primeira Guerra Mundial, à Segunda, depois a Guerra Fria, que dava aquele medo de que se eclodiria mais uma guerra mundial a qualquer momento, agora vivemos mais um período. Tenho certeza das tensões, faz-nos pensar, será que a própria existência do ser humano depende do pessimismo? Será que atrai o pessimismo que vivemos hoje? Será que algo já faz parte do bem do ser humano?
M: Vou disputar a primeira parte da sua pergunta sobre sempre tivemos incerteza e pessimismo, já voltamos nisso socialmente, a história, principalmente no século XX. Mas, sobre essa pergunta extremamente filosófica, sobre a natureza humana, ou sobre a condição humana, eu, por experiência pessoal, diria o seguinte, acho que, por covardia, eu tendo a ser um pessimista na minha vida, pessoal, profissional, afetiva, por quê? Mas é por covardia, é por aquele medo de se você se permitir sonhar, no Brasil as pessoas falam, "estão deixando a gente sonhar", aí se deixa a gente sonhar você tem uma frustração muito grande, se o sonho não se realiza, se as coisas não terminam por ser como sonho, e nunca são como sonho. Qual é a melhor maneira mais eficiente, mais eficaz de se precaver contra isso? Tentar não sonhar, tentar sonhar baixo, tentar sonhar, ah, eu gosto de uma pessoa, mas vou ficar com a outra, porque não vou me frustrar tanto se eu tiver uma rejeição dessa, eu quero emprego, mas vou tentar uma profissão, mas nem vou tentar essa profissão, vou fazer outra coisa. Então assim, mas eu acho que isso tem a ver com certa covardia, e que me parece que está talvez sendo exacerbado hoje em dia, também por esses processos tecnológicos e políticos que estamos vivendo ideológicos, é algo que eu identifico em mim; mas não gosto, acho que várias outras pessoas não são assim, são ambiciosas, são ousadas, são corajosas, e eu acho que esse pessimismo não é nada bom, porque ele é um pessimismo que funciona como uma certa castração prévia do desejo. Você tenta cortar pela raiz o desejo para evitar uma possível frustração futura e ficar triste lá na frente. É uma hipoteca da sua tristeza, que você passa a sentir agora, no momento em que abre mão de viver, de sonhar plenamente, e como diria a minha ex-chefa, e sempre muito perspicaz, ela fala que custa igual sonhar caro, sonhar barato, sonhar alto, sonhar baixo, o preço é o mesmo. Tem até um samba que fala que sonhar não custa nada, só que parece que custa, não é? Só que parece que custa, então eu não acho que isso é bom, porque acabamos por... como é que vamos nos realizar plenamente, ou pelo menos andar em direção às coisas que desejamos, se estamos abdicando de desejar por covardia, ou por pessimismo frente ao resultado. Dito isso, tem outra forma de pessimismo que eu não vejo tão problemática. Franz Neumann, e ele tem aquele texto que eu gosto muito, vocês sabem, que é uma ansiedade política, e ele fala, tem algumas formas de ansiedade, de medo, que são positivos, de estar no próprio instinto da condição, da natureza humana, de sentir medo, e o medo pode te salvar de perigo real, então se você está andando de noite, num lugar esquisito, você sente medo, talvez você fique mais alerta e corra antes frente a algum perigo, dá um exemplo bem banal, justamente porque você teve medo, justamente porque havia, portanto, alguma sorte de pessimismo envolvido, ou seja, tem uma dose de realismo e uma dose de auto preservação também nisto. O problema é quando essa auto preservação vira uma castração prévia de muitas coisas, então acho que a grande questão é encontrar e não abrir mão dessa ansiedade positiva que o Neumann fala, uma ansiedade não neurótica, e deixar que a ansiedade neurótica extremamente pessimista tome conta de tudo, não pode abrir mão totalmente dela, porque senão você fica desprotegido para o mundo e vai ser uma presa fácil para o mundo, pode não ser muito amigável, pode ser hostil em vários sentidos, físicos e psicológicos, mas por outro lado não deixar que isso tome conta. Sobre a primeira frase, eu lembro quando vocês mandaram a pergunta, eu fiquei pensando, onde eles tiraram isso? Porque eu acho que vocês estão sendo um pouco anacrônicos, se você me permite de projetar essa sensação agora atual do capitalismo tardio, do início do século XXI, pós moderno, chama-se lá do que quiser, realmente, não estamos numa era de grande otimismo global de modo geral, mas aí eu vou fazer, primeiro já fiz a acusação de anacronismo, vou voltar só até o século XX para a gente pegar alguns momentos óbvios de euforia, não apenas de otimismo, mas eu também vou fazer a acusação de eurocentrismo. Quem disse que as pessoas na China são pessimistas? Talvez eles estejam muito mais otimistas do que estavam até 1948, ou em outros momentos da história, não sei, nos anos 70, 80, não sei
Quem disse que as pessoas têm outras latitudes? Quem disse que existem tantas pessoas? A humanidade como tal, tendo uma fase otimista ou pessimista, me parece que é sempre importante desagregar isso aí em termos mundiais, mas também em termos de classes sociais, em termos de gênero, em termos de relações de poder de toda sorte, étnico, raciais, sexuais, eu diria que hoje pessoas que não se encaixam no cano unidasexualidade, cis, hétero, patriarcal, acho que elas têm mais motivos para estar otimistas do que pessimistas comparado a 30 anos atrás, ou 50 ou 150. Em alguns aspectos, estou dizendo que tudo é uma maravilha, longe disso, principalmente se estiver na Rússia ou em algum lugar, mas então acho assim, vamos lá, mundo ocidental, para a gente ficar só na história, o início do século XX, a passagem do século XIX, século XX é uma era de intenso otimismo, otimismo inteiravista, mas otimismo, e depois a Bel Époc, depois da Primeira Guerra Mundial, você mencionou a Primeira Guerra Mundial, mas o que vem ali é antes e depois da Primeira Guerra Mundial, os loucos anos 20, é uma era de intenso otimismo, seja no mercado financeiro dos Estados Unidos, sabemos o que deu, seja na Râmua Soviética, com a Revolução Soviética, são otimismos distintos, a humanidade tem projetos, o cara escreve sobre isso, é o momento da utopia, as relações internacionais, o Leninismo e o Wilsonianismo são projetos bem distintos, mas são projetos utóficos, idealistas, a seu próprio jeito também, os Leninistas vão me matar, para mais informações de Fred Hardy repensando as relações internacionais, foi de lá que eu tirei isso, então você tem, saindo um pouco da Europa, mas na linda da Europa, o pós-segunda guerra mundial, óbvio, depois da catástrofe, aquela coisa, mas você tem otimismo de novo, com declaração dos direitos humanos, fundação das Nações Unidas, mesmo sob a Guerra Fria, uma arquitetura que manteve a paz entre as grandes potências, e a expectativa de que uma série de projetos de desenvolvimento internacional pudesse acabar com a disparidade global, então isso é otimismo também, não é criação de instituições internacionais, não se proliferam desse jeito para ficar na nossa área de R.I. se não houver muito otimismo de que isso possa funcionar, mesmo tendo históricos fracassos recentes, o próprio otimismo que a guerra acabou, isso me parece, traz um otimismo inerente, aquele filme A Grande Ilusão sobre a Primeira Guerra Mundial, mostra muito bem isso, termina a guerra, tem uma alegria ali, básica, mesmo antes de terminar, no final da Segunda Guerra, já que eu estou falando de filme, pega o neo-realismo italiano, pensa num filme como La Strada, do Fellini. E ele tem um aspecto de tristeza. Ele tem um aspecto lúdico, não é? O circo ali é itinerante porque ainda não tem muito território para se fixar. Mas para mim, aquele filme fala de reconstrução, fala da estrada, da vida. A estrada que não parou, mesmo depois de toda aquela catástrofe, continuará a ter circo, risada, criança. Ou seja, um mundo lúdico. Esperança, não é? Por mais que ainda tenha muita coisa para fazer, ainda tenho muitos escombros emocionais. Então, a descolonização de África é um momento de muitíssimo otimismo no chamado terceiro mundo, sul global, não é? Vamos construir um novo mundo, Não agora. Finalmente vamos poder começar a história, né? De forma autônoma e temos o direito de sonhar, não é? Então, se você pega aí também esses movimentos, os lemas não só os textos dos grandes líderes, não é dos processos de independência, mas até mesmo novamente a música. O cinema é repleto de muito otimismo. Então, e sem falar das revoluções, não é? Cuba é muito otimismo, e a partir de 59 não é muito otimismo. Aliás, acho que o que segura ali muitas vezes é o otimismo, não é? Então, coisas do gênero. Quando termina a Guerra Fria para ficar no Ocidente, surge uma nova onda de otimismo. Para onde isso vai? Qual é a captura ideológica de cada otimismo? É outra história, não é? Sabemos que no pós Guerra Fria, o fim da história não é isso. Os conflitos agora são conflitos menores; os grandes conflitos acabaram, pelo menos os grandes conflitos ideológicos.
Então, há um otimismo de que nos aproximaremos daquele ideal cosmopolita kantiano. A globalização voltou com toda a força nos anos 90. Quem sabe uma paz perpétua? Ou pelo menos podemos ter um horizonte de novamente ler esses textos e falar sobre isso e pensar isso. Isso contrasta muito com o choque de civilizações da mesma época de Huntington, né? Mas o livro do Fukuyama de alguma maneira traz. Ainda que ele seja muito mal lido. Ele traz uma boa dose de otimismo. Então eu discuto bastante essa versão de que esse otimismo, ele é uma característica constante. Eu acho que isso é uma certa extrapolação de um sentimento que tem data e lugar. Então, vocês aqui no cantinho da Europa, Portugal é muito bom porque fica perto da Europa, tira isso, corta isso e vocês estão aqui no cantinho, nos jardins da Europa, não é num momento específico. Ficamos aí sem saber, né? A gente tem que refletir sobre essa condição de Portugal no momento: ficamos aqui à espera de fundos de Bruxelas, PRRS infinitos: podem cair governos e governos, mas há que aprovar orçamento para poder aprovar o PRR. Não é isso. É, por um lado, pela proteção da NATO, de outro, não é? Portanto, temos que embarcar em todo tipo de aventura militar que isso envolve. E aí tem um otimismo então, em relação a isso, né? E o pessimismo fica para quem? Os brasileiros estão invadindo Portugal, os africanos que estão invadindo Portugal, gente do Oriente Médio, que vem para cá, que depois quer ir para outro lugar, nepaleses, indianos, sabe-se lá o quê. Pessoal de Bangladesh, não é? Então me parece que tem otimismos e pessimismos mal calibrados, não é? Enquanto tem o medo da invasão dos brasileiros e o capitalismo, o capital espanhol e francês, que já é em inglês, sim, não é que já dominou Portugal, não é? Então essas grandes empresas espanholas estão aqui dando as cartas no nosso dia a dia? Quando você vai para a bomba de gasolina, quando você vai ao banco, quando você vai fazer um seguro, quando tudo não é: eu acho que até aqui no cartão da FEUC, que tem algo do Santander, então não é. Então acho que tem que ter cuidado com essa extrapolação de otimismos e pessimismos, porque me parece que temos que refletir sobre o nosso pessimismo atual. O que que ele? Qual é a função política dele e o que ele atende também? Porque claro que os sistemas de poder e de opressão são sistemas de castração da vontade. Então são sistemas que trabalham. Eu não acho que nada disso é acidental. Não é? Trabalham para nos deixar desmotivados para nós, de preferência como zumbis, sem capacidade de articular nem mesmo as nossas próprias emoções e desejos. E como é que você vai fazer então, movimento estudantil? Assim? Como é que você vai se organizar no movimento social, no partido político? Não é uma causa, é enfrentar de forma coerente. Se a sua atenção está o tempo todo absolutamente eletrizada por Reels.
R: Já que estamos agora a falar um pouco do passado, nos últimos anos temos visto polos importantes da extrema-direita radical serem derrotados eleitoralmente, como por exemplo Trump em 2020, Bolsonaro em 2022, ou até mesmo exemplos mais próximos como no Estado Espanhol, onde contra todas as expectativas parece ter-se conseguido evitar que a extrema-direita chegasse ao governo. No entanto, sabemos que estas derrotas são agridoces: o bolsonarismo e o trumpismo continuam bem organizados, existe um perigo crescente com a aparição de Milei na Argentina, e a extrema-direita europeia continua a crescer, com indícios de que esta pode mesmo vir a ganhar avanços percentuais relevantes nas próximas eleições europeias. O que estes crescimentos representam para as Relações Internacionais? Poderão estes agentes incentivar ainda mais o clima bélico que estamos a sentir recentemente?
M: Não necessariamente. E vou ter que ser bem honesto nessa resposta agora, para ser coerente com aquilo que eu venho dizendo nos últimos anos e que continuo a acreditar. Não acho que tem, em primeiro lugar, uma linha reta de causa e efeito entre regimes, talvez, mas governantes de extrema direita ou de direita radical e guerras automaticamente, salvo engano: salazarismo fugiu da Segunda Guerra Mundial, Franco também. Claro, depois Portugal se envolveu na sua própria guerra colonial. Então não é para dizer, também, que a então extrema direita é a nossa solução para a paz mundial - não é isso que eu estou a dizer. Mas regimes que não eram tão de direita foram na guerra por um lado para o outro por obrigação. Então eu acho que esses regimes muito conservadores ou muito direitas não necessariamente levam à guerra. E isso é um problema nosso na teoria de relações internacionais, não é? Porque a gente fica com essas caricaturas muito simplistas: ah os liberais são os pacifistas bonzinhos e os realistas são os “malvadões” que fazem guerra. Ora, o E.H Car era contra o desenvolvimento, estava errado, mas era contra a Segunda Guerra Mundial. Ele não queria fazer guerra nem com a Alemanha nazista, de tanto que ele não queria fazer guerra; queria acomodar interesses de grandes potências. Quem queria fazer guerra era Norman Engel, grande liberal, vencedor do Prêmio Nobel da Paz - fundado por um grande multimilionário, comerciante de armas desde berço - então esse liberalismo não é esse idealismo, esse que é presente na teoria de relações internacionais, é liberal? Ele volta e meia é quem produz guerras, não é? Por outro lado, é o que eu acho, então, que importa muito para as relações internacionais, para as relações transnacionais. Sim, é a existência de regimes de extrema direita, direita, radical, conservadores. Eu acho que impacta bastante, não tenho dúvida nenhuma. E, para mim, o principal aspecto que devemos olhar não é o fato de que hoje em dia (e isso é a razão do meu pessimismo político atual) somente a direita está disposta e essa direita radical a politizar os debates. Em outras palavras, a direita se chama de direita. A direita fala: somos conservadores, defendemos valores conservadores. Então, eu não sei tanto se é só o bolsonarismo, porque eu acho que isso transcende muito Bolsonaro - eu acho que o Bolsonaro funciona como um líder carismático, que pode catapultar ou simbolizar uma série de coisas. Mas eu não acho que o movimento conservador brasileiro hoje dependa do Bolsonaro. Hoje ele já é mais um limite para sua própria incapacidade. Acho que o André Ventura também é mais um limite do que uma catapulta para o movimento neoconservador em Portugal, justamente porque não afirma tanto. Acho que o Bolsonaro fez o que o Trump e outros fizeram, não é? O próprio Putin faz. É dizer nós somos, isto é, as coisas estão claras, nós não gostamos disso: nós queremos uma sociedade assim, com hierarquia, e não vamos nos pautar por um falso igualitarismo, por um falso não, isso não existe, né? E para quem vive numa sociedade uma realidade que fala, realmente isso não existe, não é que está cansado dessa hipocrisia do liberalismo de dizer que existisse essa promessa de um mundo de uma salvação iluminista da humanidade, e que somos todos iguais perante a lei. Não somos coisa nenhuma, não somos coisa nenhuma, não é? Parece-me que o grande problema atual, e é justamente essa capacidade da direita radical de afirmar-se enquanto direita e propor o debate, por exemplo, do que é esquerda. A esquerda fica muito acanhada nesse momento, ela fica fugidia, fica envergonhada de ser esquerda. Então você tem aí os fascistas saindo do armário, mas você não tem os trotskistas, os revolucionários, os maoístas, luxemburgistas, que eu gosto mais, a sair do armário? Não tem. Há, na verdade, pessoas a dizer “Ai nossa, como é bom aquele texto da Rosa Luxemburgo, não é? Seria muito bom fazer uma revolução socialista”, mas no debate público não se afirma nada. Eu lembro que assim que eu cheguei em Portugal na primeira semana, o André Ventura falou assim “não, porque o Bloco de Esquerda está cheio de trotskistas.” E sabe qual é a reação do outro lado? Silêncio, medo. E as pessoas esquecem. Eu não vi o Francisco Louçã na época, nem a Catarina Martins, e hoje a Mariana Mortágua a dizer “somos mesmo, vamos ler Trotsky, o que leste de Trotsky, André Ventura? O que você não gosta do Trotsky? Qual livro que você não gosta dele?” Sabe, é aceitar o “bluff”. É um bluff que está sendo colocado pela extrema direita quando eles falam isso. Mas tudo é uma lei, tudo é uma paranoia neo totalitária, coletivista, comunista, socialista que está em todos os lugares. Então me parece que há o que tem se conseguido frear esse avanço da extrema direita em muitos lugares, quando você tem alguém que, querendo ou não, ainda se identifica com alguma pauta realmente popular, eu não acho que o Lula é essa figura no Brasil pelo que ele faz em termos de política econômica comedida, neoliberal - eu acho que ele é porque ele é um ex-operário que, identificado com um partido que é dos trabalhadores, que tem uma bandeira vermelha, ao contrário do PSOL, que não quer ter bandeira vermelha. E então acho que o que sobra do Lula é essa figura popular, não é? Então o Lula, e ele é a cara da esquerda, num certo sentido, no Brasil, na minha opinião, infelizmente, mas continua sendo a cara da esquerda. Então é isso que dá a força, que não deixa nunca aquilo ali morrer, por mais que tentem matar.
Então, eu estou muito preocupado com isso, de verdade. Acho que consigo terminar de responder à sua pergunta. Acho que há um grande risco para as relações internacionais. Quando nossa crítica válida à globalização neoliberal, dominada pelo poder das corporações e por uma classe capitalista mundial em formação, é substituída, sequestrada e distorcida por uma crítica falsa, um espantalho que sequer existe, o tal do globalismo. Não é? Mas o que acontece é que, como resultado, paramos de falar sobre a globalização. Acabamos perdendo nosso espaço próprio no espectro político, reduzido a uma luta entre o ruim e o pior. Por exemplo, alguns países não conseguem escapar disso, como a França. Não é o neoliberalismo, como a extrema direita já sabe há sabe-se lá quanto tempo. Então, parece-me que esse prognóstico pessimista pode ser o futuro de muitos na sociedade.
R: O que acha que o futuro nos reserva? Acha que vamos continuar a afundar cada vez mais no pessimismo? Acha que pode ser que haja uma certa onda de otimismo pela frente? Depende.
M: Depende de onde. Depende de quando. Depende para quais setores em luta e para quais setores da sociedade. Eu sou pessimista com relação ao futebol, mas isso é porque sou Flamengo, só para dar um exemplo banal. Mas, nesse momento, temos muitos motivos para sermos pessimistas, porque, por exemplo, o tema anterior que eu estava tentando alertar: eu não vejo nada disso mudando e, portanto, acho que temos muitos motivos para continuarmos pessimistas enquanto houver certo eclipse ideológico da esquerda, pelo menos no Ocidente. A Argentina se explica novamente por isso, por causa do Brasil em várias outras latitudes, não é? De alguma maneira, somos o que os Estados Unidos sempre foram. Não é uma questão de direita contra direita. Isso é muito perigoso. Então, acho que há muitos motivos para ser pessimista, sim. Acho que as coisas, de modo geral, vão piorar antes de melhorar, porque estou em uma determinada fase do capitalismo cada vez mais agressiva. Então, estamos em uma fase em que alguns sonhos antigos, como o desenvolvimentismo no terceiro mundo ou o estado de bem-estar social na Europa, já não estão mais colocados, não há espaço para isso hoje em dia. Lutamos por isso, queremos mais direitos, um Sistema Nacional de Saúde decente, melhores salários para os professores e várias outras coisas. Queremos não pagar propinas, não é? Mas lutamos como nunca e perdemos como sempre. Talvez isso seja impossível na fase atual. Fui recentemente ao Brasil para assumir um cargo na Universidade Federal do Rio de Janeiro, e há um campus construído nos anos 70 pela ditadura militar na Cidade Universitária que é imenso e belíssimo. Só que, para mim, ele é um monumento ao Brasil que não foi. Ele é megalomaníaco, de certa forma, sabe? É faraônico. Os prédios são enormes, o prédio da reitoria é enorme, o prédio do centro de tecnologia é enorme, o Hospital Universitário é enorme. Então, é uma coisa que remonta a um tempo em que o Brasil tinha sido colonizado mais ou menos no século XIX, mas está no bojo daquele espírito terceiro-mundista do pós-Segunda Guerra Mundial, com fundos e uma nova perspectiva de mundo. É um novo mundo ali, e todos os arquitetos modernistas apostavam muito nisso. Hoje, o que está ali? Metade disso é ruína. Não há infraestrutura para sustentar aquele mesmo projeto, não há recursos para sustentar aquela infraestrutura. O Hospital Universitário foi condenado por anos e a solução foi implodir a metade que estava abandonada. Para mim, isso é um monumento ao Brasil que não foi. Poderia ter sido uma era de mais euforia, seja a euforia da bossa nova dos anos 50 democrática ou a euforia do Brasil potência dos anos 70 autoritária. Mas isso não está mais colocado dessa maneira hoje. E aquilo ali, para mim, parece um monumento a esse tempo. Tem um ar de apocalipse até, né? Ou de pós-apocalipse. Mas estamos aqui no pós-apocalipse. Dito tudo isso, a parte em que estou fugindo da sua pergunta é a seguinte: o futuro, né? Eu costumo dizer em sala de aula duas coisas que me preocupam muito, e eu sempre provoco os nossos colegas ecossocialistas nesse sentido, é uma provocação fraterna, até mesmo familiar.
O sol vai esfriar. Não tem jeito. Principalmente para vocês que adoram ciência. Confie na ciência. Mas eu sempre falo que o sol vai esfriar e, antes disso, cada um de nós aqui vai morrer. Não tem jeito, pode haver toda a utopia de vida eterna possível. A gente pode querer eternizar-se nos textos que escrevemos. Isso dá, né? Mas ninguém aqui vai viver para sempre. E ninguém aqui vai ser feliz o tempo todo enquanto estiver vivo, não é? E também não é disso que se trata. Mas o planeta também não vai existir para sempre. Esse sistema solar não vai existir. O que vai existir depois não sabemos, mas o sol vai esfriar. Então, acho que temos que ter muito cuidado com pelo que lutamos, sabe? Porque tem um jogo perigoso de otimismos e pessimismos aí. Porque há o pessimismo das mudanças climáticas, que nos dá toda essa urgência, mas acho que tudo foi feito com base em um catastrofismo de que o mundo vai acabar. Não é por o mundo acabar que temos que fazer algo. Costumo dizer que não é para salvar o mundo. É para construir um mundo que mereça ser salvo. Então, temos lutas para travar aqui todos os dias, para tornar nossa vida mais digna, para tornar isso aqui um mundo mais digno, sabendo que vai acabar. Não, não somos os deuses, não brincamos aqui com nossas marionetes de seres humanos. Não somos nós que jogamos esses dados, mas podemos fazer várias coisas e acho que é isso que dá sentido para a vida: tentar todo dia transformar esse mundo num lugar que mereça ser salvo. Se um dia houver um julgamento final, um apocalipse, alguma coisa para a qual a humanidade tenha que prestar contas, que a gente tenha dado uma contribuição. Não vai acontecer, mas acho que é uma metáfora mobilizadora, diferente dessa angústia salvacionista. Aliás, a humanidade, como diriam os argentinos, é europeia, não é salvacionista. Desde a colonização, esse foi o projeto salvacionista, não é? Não me parece que seja isso. Sabe? Salvar o mundo. Porque acho que isso tende a desembocar. Pode gerar um ativismo estudantil durante dois, três anos de greve climática, de ocupação daqui, mas isso tudo vira uma resignação muito grande quando se percebe que é, como dizemos no Brasil, o buraco é mais embaixo. A coisa é muito mais complicada em termos sistêmicos. Não que a pauta não esteja correta. Está absolutamente correta. Mas há o catastrofismo que se faz em relação a ela, que às vezes pode ser até deselegante, ou politicamente muito complicado. Por exemplo, vamos falar sobre mudanças climáticas e que o mundo vai acabar daqui a 50 anos para quem está com fome hoje? Para quem é agredido pela polícia todos os dias, hoje, por causa da cor de sua pele. Para quem sofre violência doméstica todos os dias, para quem tem medo de sair na rua à noite para ser violado. Ficar falando sobre uma crise climática séria para essas pessoas é complicado, né? Em outras palavras, o mundo dessas pessoas já acabou. O mundo dessas pessoas já acabou nesse sentido. E elas continuam nesse mundo, né? Então, a mim me parece que talvez, em vez de ficar tão preocupado com um fim do mundo futuro, poderíamos fazer algo com muitas pessoas. Aliás, a maior parte da humanidade para quem o mundo já acabou hoje. Ficou bonito.